Sou natural do Barreiro, onde vivi até há quatro anos, com algumas incursões, de curta duração, por Lisboa, cidade onde me encontro a residir. Desde pequenina, sou fascinada pela capital. Ambicionava viver deste lado, imaginava como seria a minha casa, as minhas rotinas, a minha individualidade, deste lado.
O símbolo dessas memórias é, incontornavelmente, o rio Tejo. Era ele que me separava do sonho. Ir passear a Lisboa, quando tinha os meus quatro, cinco anos, e os meus pais não tinham carro, era todo um acontecimento. Fazer a travessia no Tejo tinha uma magia e um prazer indescritíveis. Desde a compra dos bilhetes, ainda de cartão duro, à validação do revisor, passando pelas características das embarcações, tudo aquilo era vivido com muita excitação.
Com o passar dos anos, a estudar e, depois, a trabalhar em Lisboa, comecei a experienciar uma vivência algo diferente com o rio. Pese embora apreciasse a viagem, comecei a sentir o desgaste da vida diária dos transportes públicos. Ora senão vejamos. Há 14 anos, quando comecei a estudar em Lisboa, a travessia ainda demorava 30 minutos. Em dias de Inverno, era frequente chegar ao terminal fluvial e não ter como transpor o rio. Ventos fortes e nevoeiros suprimiam as ligações. Hoje em dia, somem-se as greves. O Terreiro do Paço não tinha estação de metro. Enfim, o barreirense quase que fazia (e faz) o triatlo para chegar atempadamente aos seus compromissos.
Apesar de tudo, há dias em que sinto saudades dessas viagens. Saudades dos barcos que tinham cave, terraço e nomes de cidades portuguesas. Dormi muitas meias horas naquelas caves, de bancos corridos de madeira envernizada. Esse era o spot preferido de quem queria fechar os olhos antes de mais uma jornada. Saudades do terraço nas tardes de Verão, do cheiro a maresia, do som das gaivotas iradas. De um inevitável presente dos céus. Fazia parte do pack "A Vida é Bela, powered by Soflusa". Saudades de caminhar para a estação e adivinhar qual seria o nome do barco que iria apanhar. Um dia, bem invernoso, entrei no Faro com a minha mãe. Íamos comprar a árvore de natal ao Colombo, essa meca do consumo. Chegámos a Lisboa duas horas depois, após termos ficado encalhadas num banco de areia que a tripulação não viu. Oops.
Havia emoção nestas viagens, havia um certo mistério associado. "Será que vou ter barco? Será que chego viva? Será que adormeço, no embalo das ondas, voltando à estação de embarque, num loop Barreiro-Lisboa?"
A introdução dos catamarãs mudou um pouco esta experiência. A viagem ficou reduzida para metade do tempo. Caso estejamos em hora de ponta, naturalmente. Nas horas mortas, e como o combustível está caro, estendemos a coisa até aos 20, 25 minutos. Mataram os espaços outdoor, garantindo que o indivíduo chega a Lisboa sem odor a tabaco e sem dejetos de aves na indumentária. Já não há cave nem bancos de madeira.
No entanto, há elementos que, hoje, ainda se mantêm, deixando-me orgulhosa da tradição marítima que as gentes do Barreiro carregam consigo.
Continuamos a ter as senhoras que rentabilizam o tempo da viagem para se maquilhar. Continuamos a ter o cheiro do verniz barato (houvessem mais tomadas eléctricas e teríamos forninhos de unha gel a cada dois lugares). Continuamos a ouvir a melodia do corta unhas. Sempre cheia de classe e requinte. Ao fundo, no bar, temos a canção, frenética, da bica a sair. O senhor do cabelo oleoso e da camisa fedorenta continua a frequentar o barco das 6h25, proporcionando aquela frescura da manhã aos demais utentes. Continuamos a ter que pedir por favor, enquanto vertemos uma lágrima, para ocupar aquele lugar que está entre duas senhoras cheias de vontade de deslocar os glúteos.
E, porque o barco é do povo, continuamos a acompanhar as vidas dos barreirenses, tão bem e tão alto comentadas.
Como não ter saudades disto?
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